Análises apontam mudanças iniciais no tamanho do corpo e no comportamento da espécie.
Texto: Gabriel Verçoza
A fragmentação florestal é reconhecida hoje como uma das principais ameaças à biodiversidade. Profundamente relacionada com agravamento da crise climática, a divisão de grandes áreas de floresta em pequenas áreas de mata é um problema complexo porque além de alterar os ecossistemas e suas funções, o processo também pode impedir que espécies de animais e plantas afetadas pelas mudanças consigam dispersar e “fugir” das áreas degradadas. Esse é um processo comum nas áreas urbanas, onde a diferença de ambientes é muito gritante quando espaços que originalmente eram florestas são desmatados, tomados por concreto e povoados com carros, buzinas, fios e fumaça.
Esse processo altera as paisagens, redefinindo o tipo de ambiente predominante naquele espaço, o que chamamos de matriz. Dessa forma, as florestas que antes formavam a matriz passam a ser fragmentos, pedaços espalhados de um ambiente que um dia esteve inteiro. As espécies que habitam esses locais passam então a precisar atravessar ambientes muitas vezes hostis para transitar entre um fragmento e outro, o que tende a atrapalhar a capacidade de se alimentar e reproduzir de vários grupos animais. Mesmo as aves que têm a capacidade de voar sofrem com a necessidade dessas travessias, uma vez que além da distância, o barulho, as condições de temperatura e até mesmo o fluxo de trânsito podem inviabilizar o deslocamento de alguns grupos, tidos portanto como mais sensíveis. Outras no entanto conseguem se adaptar a esses ambientes de modo que consigam sobreviver a eles. Nesse processo, acabam sofrendo alterações no comportamento, no canto e até mesmo em algumas características do corpo relacionadas a seus hábitos alimentares e padrões de deslocamento.
Tentando entender como esse tipo de processo pode estar ocorrendo com aves na região de Manaus, o pesquisador Stefano Avilla e a Dra. Cintia Cornelius, coordenadora das pesquisas sobre aves no PELD-IAFA, decidiram investigar como a fragmentação causada pelo crescimento da cidade de Manaus afeta o corpo e o comportamento dos Arapaçus-bico-de-cunha (Glyphorynchus spirurus). A espécie foi escolhida por ser típica de sub-bosques, área da floresta que fica abaixo da copa das grandes árvores, sendo composta por espécies de plantas mais baixas e árvores jovens. As aves de sub-bosque são duramente impactadas pelos processos de fragmentação florestal, sendo comumente o primeiro grupo de aves a deixar esses ambientes.
Arapaçu-bico-de-cunha. Foto: Lívia Queiroz | Wiki Aves
Os arapaçus-bico-de-cunha são aves pequenas, com adultos medindo cerca de 15 cm de comprimento. São escaladores habilidosos de troncos de árvores, onde costumam ser encontrados procurando por insetos dos quais se alimentam. São pássaros de penas castanho-escuras, podendo tender ao esverdeado ou avermelhado. Os bico-de-cunha levam esse nome devido à leve curvatura para cima de seus bicos. As pontas das penas de suas caudas também são um pouco mais longas que as de outras espécies de arapaçu.
Para avaliar o possível efeito da fragmentação nesses organismos, a equipe de pesquisa amostrou indivíduos em quatro lugares diferentes, sendo dois deles em florestas contínuas (sem efeito de fragmentação) e dois em grandes fragmentos urbanos dentro da cidade de Manaus. Após amostrados, os pássaros foram levados a uma barraca experimental, com o intuito de observar como se comportavam quando expostas a um novo ambiente. A reação de um animal a um ambiente desconhecido é uma forma de avaliar como ele reage a mudanças, de acordo com as condições do ambiente em que vive, afetando principalmente a sua forma de encontrar recursos. Considerando que a espécie utiliza troncos de árvores naturalmente, foram colocados cinco tocos dentro da barraca para incentivar a exploração. A barraca contava com câmeras que registravam as atividades dos pássaros, que foram mantidos no espaço por 20 min, sendo depois medidos e soltos.
Barraca utilizada para os experimentos e adaptação dos arapaçus-bico-de-cunha. a) Barraca experimental armada no meio da floresta; b) Barraca experimental sem a lona, mostrando a tela de proteção e os troncos disponíveis para exploração; c) Esquema ilustrando a barraca experimental.
Após analisar estatisticamente as medidas das asas, cauda, bico e corpo das aves, a equipe percebeu que as populações estudadas estão acumulando algumas diferenças em resposta às mudanças ambientais causadas pela fragmentação do habitat, especialmente em condições urbanas. Foi identificada uma diminuição no tamanho do corpo dos indivíduos de ambientes fragmentados em relação aos de florestas contínuas, com redução no comprimento da cauda e do tarso (parte inferior da pata das aves).
Ao assistir as gravações dos experimentos não foi possível detectar diferenças significativas no comportamento de exploração entre as aves vindas de florestas contínuas e as de fragmentos florestais, havendo porém algumas evidências de que indivíduos dos fragmentos urbanos sejam um pouco mais cautelosos em seus movimentos. Isso é algo comumente visto em espécies que interagem com as cidades, uma vez que esses espaços apresentam muitos perigos para as aves, fazendo com que indivíduos que exploram de forma mais rápida se exponham mais e acabem morrendo com mais facilidade. Também foi observado que as aves vindas dos fragmentos florestais buscaram imediatamente lugares mais altos como as paredes e o teto da barraca experimental, uma característica relacionada ao comportamento de evitar risco ao procurar por áreas mais altas. Os indivíduos de floresta contínua, por sua vez, se locomoveram pelos tocos de árvores disponíveis antes de começarem a explorar as estruturas mais altas da barraca.
Considerando as condições dos fragmentos florestais estudados, a equipe de pesquisa esperava encontrar maiores diferenças entre as aves, principalmente nas penas das asas, analisando principalmente características associadas à capacidade de se deslocar por áreas abertas. A falta de diferença no tamanho das asas entre ambientes contínuos e fragmentados leva a considerar que os arapaçus dos fragmentos urbanos não estejam se deslocando para outras áreas florestadas. Essas espécies tendem a residir em florestas mais densas e bem estruturadas, sendo encontradas na cidade somente em fragmentos maiores que 100 ha. Isso pode indicar duas coisas: ou a urbanização está inibindo os movimentos da espécie entre fragmentos, ou os indivíduos estão tentando atravessar a cidade e chegar a outras áreas verdes, mas morrem no processo. A equipe agora desenvolve estudos genéticos para compreender de forma mais concreta o quanto a urbanização está afetando esses animais.
Isso mostra a importância de aumentar o número de áreas verdes de grande porte nas cidades, como parques e reservas, além de apontar a necessidade do reflorestamento de áreas já degradadas. O arapaçu-bico-de-cunha é só uma das muitas espécies de sub-bosque que habitam as florestas da região amazônica e é ainda considerada como uma das mais “generalistas”, uma vez que consegue ocupar habitats mais degradados. Logo, a ausência de outros grupos mais especialistas, como pássaros insetívoros, nos faz refletir sobre como a urbanização tem afetado um grupo de aves que parece ser muito sensível aos efeitos da fragmentação florestal. Os dados sobre ela são um indicador do que pode estar acontecendo com espécies que têm demandas ambientais semelhantes, sendo necessário ter consciência de que espécies mais sensíveis podem estar em situações mais preocupantes ou já terem se extinguido localmente.
As pesquisas do PELD-IAFA sobre os efeitos da fragmentação florestal pelo crescimento urbano sobre as aves irão seguir buscando compreender de que maneira esses organismos são afetados pelos processos de desenvolvimento das cidades e propor alternativas para diminuir os impactos causados à biodiversidade local.
Para informações adicionais, leia o artigo: Phenotypic variation in a neotropical understory bird driven by environmental change in an urbanizing Amazonian landscape, publicado na revista Oecologia em 2021 por Stefano Avila e Cintia Cornelius, do PELD IAFA, e demais colaboradoras.